
'Vida nunca mais foi a mesma', diz brasileira que perdeu filho após terremoto que deixou quase 60 mil mortos na Turquia 712d4b
Tremor de magnitude 7,8 na escala Richter, ocorrido em 6 de fevereiro de 2023, foi o mais letal desde 1970, quando um sismo atingiu o Chile 4b1u6v
O dia 6 de fevereiro de 2023 mudou para sempre a vida da brasileira Fernanda Giçi, de 45 anos, natural de Guarujá, litoral de São Paulo. À época, ela morava em Adeiamane, no sudeste da Turquia. O local foi um dos mais afetados pelo terremoto de magnitude 7,8 graus, que devastou o país e parte da Síria, deixando quase 60 mil mortos. 311c33
- Essa reportagem faz parte da série Rastros da Ebulição, que conta histórias de brasileiros que tiveram suas vidas devastadas por eventos climáticos extremos --incêndios florestais, secas, chuvas e terremotos-- impulsionados pelo aquecimento global.
O terremoto foi o mais letal desde 1970, quando 67 mil pessoas morreram após um tremor no Peru, que também superou os 7 graus na escala Richter. Quase 40 mil imóveis foram destruídos pelo terremoto e pelos tremores secundários, que incluíram um sismo de 7,5 mesmo dia.
Fernanda e sua família --o marido, Midhat, e o filho pequeno, Yusuf-- perderam tudo. Além de bens materiais, a brasileira também sofreu um aborto espontâneo. Ela estava grávida de três meses. De volta ao Brasil há mais de dois anos, Fernanda ainda sente os reflexos do trauma e garante que a vida nunca mais foi a mesma. Ao Terra, ela conta sua história.
Muitas perdas em um cenário de terror n6250
"Uma ida à feira em maio de 2018 mudou todo o rumo da minha vida. Foi lá que conheci Midhat, um turco, que mais tarde viria a se tornar meu marido e pai do meu filho, Yusuf. Trocamos contato, começamos a namorar e nos casamos um ano depois.
No final de 2021, a mãe de Midhat estava muito doente e resolvemos nos mudar para perto da família dele. De Vicente de Carvalho, em Guarujá, fomos para Adeiamane, na Turquia. Infelizmente, a mãe dele morreu antes mesmo de chegarmos lá. ado o período de luto, começamos a nos adaptar à nova vida.
Foi bem difícil para Midhat conseguir emprego, mas, aos poucos, as coisas foram se ajeitando. Ele trabalhou em uma loja de doces; em uma fábrica de tijolos; na terra, plantando; e até mesmo no lixão, separando sucata. Eu ficava em casa, cuidando dos afazeres domésticos. Vivíamos em uma província e tínhamos várias plantações, de tomate, uva, berinjela. Era uma vida tranquila.
No período em que vivi na Turquia, ei por três terremotos. Os dois primeiros foram rápidos e de baixa intensidade. Senti a Terra tremer e fiquei com medo, mas não ou disso. O evento que mudaria minha vida aconteceu em 6 de fevereiro de 2023. É muito difícil voltar nesse dia.
Desde a manhã, tudo parecia estranho. Me lembro de dizer ao Midhat: 'As galinhas estão doidas.' Quando joguei o trigo, em vez de elas virem correndo, como de costume, vieram andando devagar e depois foram para o outro lado. Os arinhos pareciam voar desnorteados, as vacas estavam quietas. Sentia que havia algo errado.
À tarde, olhei pela janela. Vi que estava nevando e chovendo ao mesmo tempo, algo raro de acontecer. Me lembro de pensar: 'Imagina se vem um terremoto? Deus me livre!'. Logo espantei esse pensamento e fui cuidar da janta.
Por volta de oito horas da noite, senti um tremor bem sutil e vi terra cair do teto. Achei estranho, mas ignorei. Quando terminamos de jantar, disse ao Midhat para irmos dormir mais cedo. Estava muito frio. Então, acordei às três horas da manhã, ando muito mal.
Eu estava grávida de três meses. Pensei que pudesse ser um mal-estar da gestação, mas logo vi que não era. Era algo diferente. Fui à cozinha, tomei um copo d’água e voltei para o quarto.
No momento em que me sentei na cama, comecei a ouvir pequenos estalos. Os barulhos foram aumentando progressivamente. Então, veio uma onda silenciosa, seguida de um som estrondoso. Tive a sensação de estar sufocando.
Arranquei Yusuf do berço e comecei a gritar: 'Corre!'. Depois, o joguei no colo do Midhat e falei: 'Salva ele!'. Eu estava tonta, ando mal. Quando chegamos na porta de casa, tudo começou a balançar com mais intensidade. Parecia que havia um bicho se revirando debaixo da terra.
É uma sensação muito estranha, porque, ao mesmo tempo em que você se sente solta, parece que algo te prende no chão. Me lembro de chegar perto de uma escada e levar um tombo. Tentei me levantar várias vezes, sem sucesso. De longe, vi Yusuf e Midhat tentando segurá-lo. Meu filho parecia um boneco de pano sendo jogado de um lado para o outro.
Em dado momento, Yusuf saiu correndo. Dei graças a Deus que ele correu para o lado certo. Se tivesse ido na direção oposta, teria morrido --a casa da frente desmoronou nesse exato momento. Em meio a essa loucura, Midhat conseguiu entrar na casa e tirar o pai dele de lá. Assim que chegou na porta, o resto da casa desabou.
Quando olhei à minha volta, vi a província tremendo, as casas caindo, os bichos gritando, morrendo soterrados. Nunca vou me esquecer dos gritos que ouvi. Foi um desespero muito grande.
Nosso vizinho tinha um carro grande, tipo uma van. Pegamos todas as crianças e nos colocamos lá dentro. Ficamos esperando para ver se o tremor parava. Nada. De dentro do carro, éramos jogados de um lado para o outro.
Ficamos no carro por bastante tempo. Às seis horas da manhã, achávamos que finalmente entraríamos em algum lugar para descansar. Então, fomos surpreendidos por um tremor secundário, de magnitude 7,5.
A Turquia não parou de tremer por nem um momento sequer. Ninguém conseguia dormir. Ficamos sem água, sem luz, sem comida. Pessoas de outras cidades que conseguiam chegar a Adeiamane vieram deixar doações.
O governo também agiu rápido. No dia seguinte, já começou a chegar ajuda. Os agentes trouxeram barracas, para as pessoas não ficarem ao relento, água e comida. Me lembro de olhar ao meu redor e pensar: 'Como vai ser daqui para frente? Perdemos tudo.'
Naquela altura, percebi que eu estava sangrando. Pensei que fosse um sangramento normal por causa do susto, mas não. O bebê já tinha ido embora. Nós tínhamos descoberto a gravidez recentemente e estávamos bem felizes. Foi um baque.
Os dias seguintes ao terremoto foram estranhos. Praticamente todas as casas foram destruídas. A casa do irmão mais velho do Midhat ficou de pé porque era uma construção recente e mais reforçada, mas todas as outras foram para o chão. As que não foram totalmente destruídas ficaram danificadas, sem uma parede ou rachadas ao meio.
No centro da cidade, a situação era ainda pior. Uma loja onde todos se reuniam para comer pão e tomar chá ficou destruída. O nome do estabelecimento era "Dostler" ("Amigos"). Quando a vi em ruínas, não acreditei.
O cenário, em geral, era de filme de terror. Partes de casas fincadas no teto dos carros, asfaltos com rachaduras enormes e pessoas vagando pelas ruas como zumbis, como na série The Walking Dead. Totalmente perdidas. Era de dar muita pena.
Ficamos temporariamente na casa do irmão do Midhat. Nos primeiros dias, foi um alívio. Depois, a ficha foi caindo. Eu pensava: 'Não tem casa, não tem roupa, não tem nada. E agora? O que será de nós?'.
Para a nossa sorte, uma brasileira, Luanny, que atuou em parceria com a Embaixada do Brasil em Ancara, nos ajudou a sair da Turquia. Eu a conheci por um grupo de Facebook. Nunca nos vimos pessoalmente, mas ela foi um anjo em nossas vidas.
Menos de uma semana depois do terremoto, desembarcamos no Brasil e voltamos para a cidade em que morávamos. Midhat voltou para a feira, eu comecei a trabalhar com massoterapia e recebemos algumas doações. Aos poucos, fomos nos reerguendo, mas minha vida nunca mais foi a mesma.
Pesadelos recorrentes 3h666b
Desenvolvi um quadro de estresse pós-traumático e, por muito tempo, tive pesadelos recorrentes. No sonho, eu acordava de madrugada e puxava meu filho para fora do berço. ei meses fazendo acompanhamento psicológico e fui melhorando aos poucos, mas sinto que não sou a mesma pessoa.
Já não tenho mais os pesadelos, mas ainda sinto os reflexos do trauma. Às vezes, estou no sofá, relaxando, e sinto algo tremer. Se Midhat mexe nos pés na cama, acordo assustada. O que me ajuda bastante é o trabalho. Sinto que, quando estou trabalhando, consigo transcender os pensamentos.
A vida não tem sido fácil. Às vezes, me vem um vazio, uma tristeza muito grande. Ainda assim, tenho motivos para agradecer. Meu marido e meu filho estão vivos --o outro, que não chegou a nascer, Deus sabe o que faz. Só me resta aceitar.
Comecei a estudar biomedicina, que sempre foi o curso dos meus sonhos, e quero trabalhar duro para poder dar um futuro melhor para mim e para a minha família. Esse é meu maior objetivo. Acredito que, com força de vontade, conseguirei alcançá-lo. Nada é impossível para Deus."
Mudanças climáticas 2q472w
A relação entre mudanças climáticas e terremotos tem sido alvo de diversos estudos científicos realizados nas últimas décadas. Em seu artigo O conhecimento sobre sismos e mudanças climáticas como proposta pedagógica: estudo de caso em uma escola pública de Fortaleza, o meteorologista Emerson Mariano da Silva cita estudos que sugerem que, a longo prazo, mudanças no clima são capazes de potencializar o movimento das placas tectônicas, causando o aumento de incidências de terremotos.
Alguns fenômenos poderiam explicar essa relação. Uma conclusão apontada em diversos estudos é que, com o aquecimento global, o aumento da temperatura do ar nos polos leva ao derretimento anômalo das calotas polares, o que faz pressão sobre a crosta terrestre, aumentando a atividade sísmica.
Outra conclusão é que a maior intensidade das chuvas, resultado das mudanças climáticas, pode tornar deslizamentos de terra mais frequentes, o que também contribui para maior atividade sísmica. Este último fenômeno vem sendo observado nos últimos anos no Himalaia, uma das as regiões mais sismicamente ativas do mundo atualmente.
A partir desses estudos, Silva, que é professor e pesquisador da Universidade Estadual do Ceará (Uece), decidiu realizar sua própria pesquisa, junto a seus alunos, para avaliar a relação das mudanças climáticas com terremotos no estado do Ceará e como reduzir riscos em uma área de vulnerabilidade social (IDH de 0,395) em Fortaleza. Segundo ele, engana-se quem pensa que não ocorrem terremotos no Brasil.
"O Brasil localiza-se sobre o interior de uma placa tectônica, a Placa Sul-Americana. Ela apresenta baixa atividade sísmica em comparação com outros países da América do Sul, situados próximos dos limites territoriais das bordas dessa placa", afirma Silva ao Terra. "Apesar disso, o país já registrou diversos terremotos, de menor e maior intensidade. O mais forte deles, de magnitude 7,6 na escala Richter, ocorreu em 9 de novembro de 1963, no Acre."
No Ceará, a sismicidade é caracterizada como notável, e as probabilidades de ocorrerem terremotos com magnitude igual ou maior que 4,0 na escala Richter são elevadas. O maior abalo sísmico ocorrido na região Nordeste foi o terremoto de Pacajus, de magnitude 5,2 na escala Richter, que atingiu o Ceará em 20 de novembro de 1980.
De acordo com estudos citados por Silva em seu artigo, há fatores que aumentam a vulnerabilidade sísmica de um grupo ou sociedade. Entre eles estão situação econômica de pobreza ou extrema pobreza e estabelecimento em áreas de risco, em ambientes deteriorados e com construções frágeis. Grupos específicos, como mulheres e crianças, são ainda mais vulneráveis, apresentando 14 vezes mais risco de morte no caso de terremotos.
Nesse sentido, Silva defende uma educação pública que promova, junto à população, uma cultura de prevenção de risco a desastres. Ele cita um estudo que apontou que o desconhecimento da população brasileira sobre a sismicidade eleva os riscos e a probabilidade de geração de desastres, inclusive terremotos de magnitudes leve e moderada.
"Pode-se dar como exemplo uma situação registrada no estado do Maranhão, em 2017, quando um abalo de magnitude 4,7 na escala Richter levou ao esvaziamento de prédios", diz. "A educação climática pode proporcionar a formação de pessoas conscientes da preservação do meio ambiente e de seu papel socioambiental nas comunidades em que vivem."
*Essa reportagem teve a coordenação e edição de Aline Küller e Larissa Leiros Baroni.