
'Nunca mais o Brasil voltou a ser como era antes da ditadura', diz filha de Zuzu Angel, morta pelo regime militar 6gg5v
Em uma conversa dolorida e emocionante com o Terra, Hildegard Angel fala da saudade da mãe, do irmão e da cunhada, mortos durante a ditadura a4m2b
Hildegard Angel tinha 14 anos quando o Brasil mergulhou em um período sombrio da história brasileira. Hoje, aos 75, ela lembra com detalhes daquela noite em que a rádio anunciou que o País, a partir daquele instante, viveria sob o regime militar. São memórias que sobrevivem até hoje e ecoam em sua mente, persistentes e dolorosas, como um luto que nunca se encerra. Afinal, foi naquele período que ela perdeu sua mãe, a estilista Zuleika Angel Jones, conhecida como Zuzu Angel, aos 55 anos, seu irmão, Stuart Edgar Angel Jones, de 25, e sua cunhada, Sônia de Moraes Angel, de 27, todos mortos pelo Estado. 226c54
Esta reportagem faz parte da série 'Heranças da Ditadura', que fala sobre as marcas deixadas pelo regime militar na educação, segurança pública e política 40 anos depois do fim da repressão no Brasil
“A minha forma de sobreviver era calar. A sua vida estava condicionada à sua sobrevivência. Foram muitos episódios de medo e de dor”, conta chorando a jornalista em entrevista ao Terra.
Hildegard começou a conversa emocionada e não foi à toa. Ela estava prestes a compartilhar uma história que carrega consigo, como um fardo pesado. Durante 1h40, suas mãos trêmulas seguravam lenços de papel, já amassados e úmidos de tanto uso. As lágrimas insistiam em escorrer a cada lembrança que ela revivia, como se o ado ainda a tocasse com intensidade.
A cada pausa para respirar, tentava recompor o fôlego. A dor em seus olhos era palpável, uma mistura de saudade e resistência, mas, mesmo em meio à tristeza, havia um brilho de orgulho ao falar de sua família --um amor que persiste, intacto, apesar de tudo que sofreu.
Eu, como repórter, também me senti emocionada e não consegui conter as lágrimas, quase como se estivesse compartilhando daquela carga emocional. A conversa poderia ter se estendido por horas, pois ali, naquele espaço, o tempo era apenas um detalhe diante da força de uma história que precisava ser contada.
O Brasil antes de 1964 3w6v54
Antes de testemunhar um dos períodos mais obscuros da história do Brasil, Hildegard se lembra de um País livre, com jovens politizados e artistas valorizados.
“A minha geração foi uma geração muito atenta à política porque os currículos escolares tinham uma disciplina que era Organização Política e Social, que despertava esse civismo. Despertava a nossa cidadania. Crescemos na efervescência de uma política em que não havia essa violência que hoje a gente testemunha, e o ambiente não estava tão corroído, devastado, como vemos hoje”, conta.
A jornalista recorda que, nos anos anteriores a 1964, o Brasil vivia um período de polarização política. De um lado, havia os políticos de direita, como Carlos Lacerda, que eram apoiados e vistos com bons olhos pelas elites. Do outro, estavam os chamados à época “juscelinistas”, ligados ao Partido Social Democrático (PSD), e os conhecidos como “janguistas”, do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), que, segundo ela, tinham certa identificação entre si.
Ela explica que os “janguistas” eram mais assertivos e radicais em relação às reformas de base propostas pelo então presidente João Goulart; já os “juscelinistas” adotavam uma postura mais cordial e moderada. Hildegard também mencionou que, naquela época, Juscelino Kubitschek, que era amigo de sua família, já estava em campanha para as eleições de 1965, com o objetivo de retornar à Presidência da República. Ele havia comandado o País entre 1956 e 1961.
No entanto, em 1964, o Brasil viveu um momento que marcou a sua história: um golpe de Estado que resultou na deposição de João Goulart. O movimento, liderado pelas Forças Armadas, ocorreu entre 31 de março e 1º de abril daquele ano, marcando o fim da Quarta República (1946–1964) e dando início à ditadura militar, que se estendeu até 1985.
“Em 64, o golpe nos pegou de susto. Nós não imaginávamos que aconteceria. Na noite do golpe, nós tínhamos uma rádio vitrola na sala, e a mamãe estava muito aflita. Ela já tinha a preocupação, porque o Stuart tinha 18 anos, talvez já tivesse completado 19, e ele já tinha seus ideais muito bem delineados. Havia, na época, uns cursos de conscientização política que eram dados na PUC-RJ, e ele tinha participado. Meu irmão fazia parte de uma juventude que já vinha politizada pelo ambiente natural da política saudável, em que havia uma liberdade plena no Brasil e as pessoas podiam se manifestar”, relembra a jornalista.
Hildegard diz que Juscelino Kubitschek era amigo de sua família e frequentava a casa de uma tia dela. “Após o golpe, me lembro de nós indo para a casa do Juscelino, que morava na Praia de Ipanema [no Rio de Janeiro], para fazer vigília. Ele estava prestes a deixar o Brasil”, recorda.
A casa estava cheia de pessoas, e Hildegard se lembra de ter ficado sentada em uma cadeira, encostada na parede da sala de jantar, enquanto ouvia as conversas ao redor. “Ainda havia aquela esperança, aquele entusiasmo, de que Juscelino iria embora, mas voltaria. Acreditávamos que tudo aquilo seria temporário, que não duraria muito”.
Filha de Zuzu Angel h5r5n
A mãe da jornalista foi uma das estilistas mais influentes da história da moda brasileira e uma combatente incansável contra a violência do regime militar. Por anos, Zuzu dedicou-se a denunciar as atrocidades cometidas pela repressão, até que sua vida foi interrompida em um acidente de carro arquitetado por agentes da ditadura.
Zuzu Angel casou-se com o norte-americano Norman Angel Jones em 1943 e teve três filhos: Stuart, Hildegard e Ana Cristina. O casamento chegou ao fim em 1960. Sua carreira como estilista começou no final dos anos 1950 e ganhou projeção internacional na década de 1970, conquistando clientes famosas, como as atrizes Kim Novak e Joan Crawford.
No entanto, sua vida tomou um rumo dramático na manhã de 14 de maio de 1971, quando seu filho Stuart, militante do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), foi preso no Rio de Janeiro e levado para a Base Aérea do Galeão. Segundo relatos do preso político Alex Polari de Alverga, que compartilhou a cela com Stuart, ele foi submetido a torturas brutais e não resistiu, morrendo ainda naquela noite.
A partir daquele momento, Zuzu transformou sua dor em luta. ou a buscar incansavelmente informações sobre o paradeiro do filho e o direito de sepultá-lo, denunciando as violências da ditadura à imprensa nacional e internacional.
Em 1971, a estilista realizou um desfile-protesto no consulado brasileiro em Nova York, nos Estados Unidos, onde suas criações ganharam contornos políticos. Suas peças aram a exibir estampas que denunciavam a repressão: tanques de guerra, canhões, pássaros engaiolados, meninos aprisionados e anjos amordaçados tornaram-se símbolos de sua resistência.
Zuzu morreu em 1976, em um episódio que a ditadura tentou classificar como um acidente de carro, na saída do túnel Dois Irmãos, em São Conrado, no Rio de Janeiro. No entanto, em 1998, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos reconheceu que sua morte foi obra do regime militar. Depoimentos revelaram que ela foi empurrada para fora da pista por um veículo conduzido por agentes da repressão. Hoje, em sua homenagem, o túnel leva seu nome.
Stuart Angel e sua militância política j5s58
Hildegard nasceu em uma família que jamais se rendeu na luta pela liberdade e pela derrubada da ditadura no Brasil. Seu irmão, Stuart Angel, era estudante de Economia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) quando o golpe militar eclodiu. Foi nesse contexto que ele iniciou sua trajetória como militante político, ingressando na Dissidência Estudantil do PCB da Guanabara, grupo que mais tarde se transformaria no MR-8.
“Muitos dos jovens do MR-8 vieram da Economia. Era o curso que a maioria dos jovens mais politizados faziam”, conta. Ela afirma que, naquela época, sua família não tinha conexões com militares, e preocupada com os riscos que Stuart corria, sua mãe tentou estabelecer relações com figuras influentes do meio militar, incluindo Yolanda, esposa de Costa e Silva, que viria a se tornar o segundo presidente durante a ditadura militar.
A jornalista relembra os momentos de resistência dos jovens durante o regime. Ela conta que, na época, participava de ações clandestinas para denunciar as atrocidades da ditadura. “Nós fazíamos uma certa resistência”, diz.
Um dos episódios mais marcantes desse período, para ela, foi o assassinato do estudante Edson Luís, morto por policiais militares no restaurante Calabouço, no centro do Rio de Janeiro. Naquele dia, Hildegard e seus colegas estavam preparando filipetas --pequenos papéis impressos com mensagens como “a ditadura está matando”-- para distribuir em filas de cinema. Eles também confeccionaram faixas para uma manifestação que estava sendo planejada.
Enquanto trabalhavam, um rapaz chegou com a notícia: Edson Luís havia sido morto. “O Conservatório inteiro foi, assim como todas as escolas, e aquela foi a primeira grande manifestação”, relembra. A cena na escadaria da Câmara de Vereadores foi emocionante, com jovens da resistência fazendo discursos inflamados. “Foi uma manifestação popular legítima, tão grande e inspiradora, com tanta gente, mesmo sem haver internet para marcar o encontro.”
Hildegard também recorda com orgulho a participação do irmão, Stuart, naquela manifestação. “Nesse dia, me lembro do meu irmão, que sempre estava na retaguarda, muito discreto, com a cabeça abaixada, encostada no joelho, sentado na escadaria. Eu fiquei tão orgulhosa de ver que ele estava ali”, conta emocionada.
Além das manifestações públicas, Stuart e seus colegas organizavam comícios relâmpagos. “Eles paravam o Fusca, entravam no campus da UFRJ e faziam discursos como jovens engajados pela pátria”, explica Hildegard.
Esses jovens sabiam dos riscos que corriam --prisão, tortura e até morte--, mas não deixaram de lutar pelo País. “Aquilo é que era ser patriota”, diz ela. No entanto, muitos deles foram impedidos de continuar os estudos, sendo apontados como “maus exemplos” pelo regime.
Hildegard destaca a desigualdade da luta: os ditadores tinham tanques, canhões, fuzis e metralhadoras, enquanto os jovens contavam apenas com sua coragem e determinação. “E esses jovens, muitos deles de classe média, classe média alta, classe média baixa, estavam todos juntos naquele compromisso com o seu País. Aquilo era emocionante.”
Em 1969, Stuart já ocupava uma posição de liderança dentro da organização, assumindo o comando de operações armadas e, consequentemente, tornando-se um alvo prioritário para os órgãos de repressão do regime.
A família dele ou a viver anos de angústia, recebendo notícias apenas por meio de uma parente de Sônia, sua companheira, que intermediava o contato. “O Stuart começou como clandestino. E nós vivíamos naquele temor do pior acontecer. Sempre aquele medo, lendo jornais, procurando cada notícia. Se a polícia matava alguém, eu ficava dias seguindo ali os jornais para ver se tinham identificado. E assim foi por muitos anos. E depois, ele ou a ser perseguido, procurado, quando já estava no movimento”, relembra a irmã.
Mãe transforma dor em luta 1k2b6l
Até que, no dia 14 de maio de 1971, Stuart foi sequestrado por agentes da ditadura, entrando para a lista de desaparecidos políticos desse período. Naquele dia, a família recebeu uma ligação anônima.
“Disseram: ‘Paulo caiu’. Era o codinome dele, e a gente não sabia. Pensamos: ‘Quem é Paulo">
Por muito tempo, Zuzu não desistiu de procurar Stuart, recorrendo até mesmo a políticos. “Ela sabia [que ele tinha morrido], mas não queria acreditar”, diz Hildegard. “Os ditadores insistiam que ele não tinha sido preso. Mas depois disso, Zuzu ou a receber denúncias, incluindo uma carta de Alex Polari [poeta e militante político preso na ditadura] sobre a morte de Stuart.”
A mãe da jornalista adotou estratégias para chamar atenção para o caso. “Ela colocava cartinhas com mensagens e poemas nas portas de pessoas influentes. O próprio irmão do general Geisel morava perto da nossa casa e recebeu uma delas. Mamãe tentou ser atendida por Geisel em Brasília, mas não conseguiu. Era um desespero.”
Zuzu continuou a distribuir cartinhas, poesias, recortes de jornal e notícias sobre o caso, contando com a ajuda até da mídia internacional da época. “O anjo ou a ser a marca dela na moda, em homenagem ao Stuart”, explica Hildegard. “Mamãe transformou a dor dela numa luta pública, criando um circuito de formadores de opinião, incluindo artistas. Era uma luta muito forte e intensa. Foram muitos anos de sofrimento, e até hoje o corpo do meu irmão nunca foi encontrado”, acrescenta.
Na época, Stuart havia sido levado à Base Aérea do Galeão, um dos principais centros de tortura no Rio de Janeiro. Era comum que corpos de presos políticos torturados fossem jogados ao mar por aviões da Força Aérea Brasileira (FAB), com as pernas amarradas. “Acreditamos que ele possa ter sido uma dessas vítimas. É doloroso ar todos esses anos procurando o corpo de um irmão”, lamenta Hildegard.
O caso de Stuart é um dos mais conhecidos da ditadura militar, ganhando notoriedade tanto no Brasil quanto internacionalmente, graças à incansável luta de Zuzu. “Mamãe começou uma verdadeira caça aos bruxos após a morte do meu irmão”, relembra.
Zuzu não mediu esforços para denunciar as atrocidades do regime. Certa vez, confrontou o ex-presidente Costa e Silva, que morava em um apartamento ao lado do dela após deixar o poder. Ela disse: “Seu sem pescoço, deixou matarem os nossos jovens. Tem tanta gente morrendo. Você deu um golpe de Estado.” Hildegard reflete: “Eu me pergunto: Quem faria isso? Ela tinha muita coragem.”
Em outra ocasião, Zuzu confrontou Juscelino Kubitschek em uma festa, acusando-o de omissão: “Eu não te perdoo porque você tem voz, você tinha plateia, foi para o exterior e não disse uma palavra sobre os jovens que estavam sendo mortos no Brasil. Você se omitiu.” Hildegard confessa que ficava “mortificada” ao ver a mãe arriscar a vida dessa forma.
Família marcada por rupturas e perseguições 11h28
Hildegard descreve sua personalidade otimista durante os anos difíceis da ditadura: "Eu sempre fui meio Poliana, achando que tudo ia acabar bem, que no final nós íamos conseguir". No entanto, sua família enfrentou uma série de rupturas e perseguições.
Sua irmã, por exemplo, foi forçada a deixar o Brasil após receber informações de que a PUC-RJ, onde estudava Ciências Sociais, seria invadida. "O curso dela, de Ciências Sociais, era Sociologia. Era um curso que, para eles, não deveria nem existir porque faz você pensar e questionar", explica Hildegard. A mãe, então, enviou a irmã para os Estados Unidos, onde ela continuou seus estudos. Essa foi mais uma das muitas “perdas" que a família sofreu.
O pai de Hildegard também foi vítima da violência do regime. Ele morava no interior e, certa vez, foi buscá-la em Porto Alegre, onde ela tentava seguir carreira no teatro. "Nossas peças eram sistematicamente proibidas. Tudo era proibido", relembra.
No caminho de volta, ele a deixou na rodoviária de São Paulo, sem explicar o motivo. Anos depois, Hildegard descobriu que ele havia sido seguido e, temendo por sua segurança, decidiu deixá-la lá. "Depois disso, ele estava sem os dentes e falou: ‘Ah, não, eu arranquei os dentes, eu não gosto de dentista’, e eu achei tão estranho", conta ela.
Mais tarde, soube que o pai havia sido sequestrado e torturado por militares que acreditavam que ele sabia do paradeiro de Stuart, seu irmão perseguido. "Pegaram meu pai, levaram ele para um sítio, espancaram para o papai contar alguma coisa que ele também não sabia."
A jornalista atribui o fato de não ter sido presa e torturada pelo seu trabalho no jornal O Globo. Ela acredita que a visibilidade e a proteção indireta do jornal a mantiveram a salvo. “Eu tinha hora para entrar e sair, as pessoas saberiam que eu estava desaparecida”.
Mesmo assim, a perseguição era constante. Ela relembra um episódio em que recebeu um alerta sobre as fotos do desfile de protesto político que sua mãe, Zuzu Angel, fez em Nova York. "Estão chegando as fotos das roupas com cruzes, com anjos... E vão pegar você", avisou um colega. Hildegard, porém, decidiu não se esconder: "Eu não vou me esconder. Porque eu estou aqui que eles não vão me pegar", disse à época.
A vida sob a ditadura era marcada por medo e precauções. Hildegard descreve como as pessoas adotavam estratégias para evitar sequestros: "Nós andávamos no meio da rua para não ser sequestradas. Era um protocolo que as pessoas que se consideravam ameaçadas seguiam". Ela já chegou a testemunhar o sequestro de uma jovem por um carro preto.
A jornalista também relembra os anos em que estudava teatro, uma época marcada pelo silêncio imposto pela ditadura. “Eu fazia teatro, mas não podia falar. Nem na terapia, nem em casa, nem no telefone. As pessoas sabiam que não podíamos tocar no assunto”, conta.
Ela e sua irmã frequentavam o Conservatório Nacional de Teatro, onde a censura era tão presente que até mesmo conversas cotidianas eram evitadas. “Não podíamos falar de jeito nenhum, de nada, de coisa alguma.” O clima de medo era constante, e a expressão artística, muitas vezes, servia como uma forma de resistência silenciosa.
Um dos momentos mais marcantes para ela foi a peça Gracias Señor. “Era um espetáculo de protesto político”, explica Hildegard. Os atores, iluminados por holofotes, tinham que se identificar com nome, sobrenome e número da carteira de identidade.
Ela interpretava uma personagem que simbolizava o capitalismo selvagem, cantando “Love me or leave me” (Ame-me ou deixe-me), uma clara referência ao mantra da ditadura: “Brasil, ame-o ou deixe-o”. “Esse foi meu último espetáculo no teatro”, diz ela, destacando como a arte se tornou um ato de coragem em tempos de repressão.
A dor e a luta de uma família 365b1f
Foram anos de luta até que o fosse reconhecido que Zuzu Angel não morreu em um acidente qualquer, mas, sim, em um atentado planejado pelos ditadores. Quase 50 anos após os assassinatos de Stuart e Zuzu, o Estado brasileiro finalmente itiu, por meio das certidões de óbito, que ambos foram vítimas da ditadura militar. Em 2019, os documentos foram entregues a Hildegard.
As novas certidões afirmam que as mortes de Stuart e Zuzu foram “não naturais, violentas e causadas pelo Estado brasileiro, no contexto da perseguição sistemática e generalizada a indivíduos identificados como opositores políticos ao regime ditatorial vigente entre 1964 e 1985.”
Hildegard nunca deixou de lutar pelo reconhecimento das mortes de Stuart e Zuzu, assim como sua mãe jamais parou de lutar contra a violência do regime antidemocrático. “Sempre perguntavam a ela por que continuava lutando, se meu irmão já estava morto e podiam matá-la. Ela respondia: ‘Eu não estou lutando mais pelo meu filho, eu luto pelos filhos das outras.’ É isso que é engajamento. Quando você descobre que tem força, você não larga o bastão. Ela nunca parou de lutar, nem nos anos mais terríveis, sob Médici e Geisel”.
Mesmo sob ameaças constantes, Zuzu enfrentava os agentes do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) com coragem. “Mamãe era ameaçada, mas ia até a porta e xingava o cara do DOPS: ‘Eu não tenho medo de você não. Se me matar, mata. Eu não vou fazer falta. Vocês já me mataram, podem me matar de novo’”, relembra Hildegard.
A jornalista conta que Zuzu mantinha sua alegria e esperança, mesmo diante da dor. “Ela nunca perdeu aquela gargalhada dela. Até que fizeram a limpeza nas vozes brasileiras”, diz, emocionada.
A estilista usou a moda como forma de denúncia internacional, expondo as atrocidades da ditadura. Ela mostrou ao mundo o que estava acontecendo por meio de suas costuras. “Eles resolveram pôr fim à ditadura porque não aguentavam mais a pressão internacional. E por que mataram a mamãe? Assim como Herzog, Jango, ela foi vítima de um plano estratégico de Geisel para silenciar vozes dissonantes que ameaçavam sua hegemonia pós-ditadura.”
Para Hildegard, viver em uma família tão atingida pela violência do regime foi uma experiência traumática. “Foi uma esquizofrenia”, desabafa. “Eu tinha que sofrer escondida, sem aparentar, ou até mesmo evitar sofrer. Eu ficava na porta dos cinemas onde avam filmes sobre a ditadura e não conseguia entrar. Recebia livros e poesias em homenagem ao Stuart e não conseguia ler. Isso me inviabilizava de viver aquele Brasil paralelo que eu tentava construir. Foi muito dolorido, muito esquizofrênico.”
Após o fim da ditadura, a jornalista ainda enfrentou o desafio de reconstruir sua vida. Ela deixou o jornal O Globo em 1988, trabalhou em outros jornais como colunista social e, mais tarde, retornou ao periódico. “Já era outra Hildegard, fazendo um colunismo engajado e responsável. Voltei a ler, porque naquele tempo não podíamos ler qualquer coisa. Agora, eu me permito mergulhar nesse drama, nessa tragédia. Eu consegui florescer.”
Marcas da ditadura 6s4i2l
Hoje em dia, ados 40 anos desde o fim de um regime que atravessou sua família de forma cruel e traumática, ela reflete sobre o legado que ainda vê da ditadura no Brasil.
“Nunca mais o Brasil voltou a ser exatamente como era antes da ditadura. Abriu frestas porque os ditadores tiveram filhos, tiveram netos. E eles são tão ruins, tão malvados, tão cruéis, que ao invés de reconhecerem que seus pais e avôs cometeram crimes contra o Estado, querem de novo a ditadura. Querem os cargos, o poder, a visibilidade”, diz.
“Antes da ditadura, havia um pudor à perversidade. Hoje, vemos o monstro saindo pelos olhos, boca e nariz de pessoas. Mas não podemos abrir mão desse legado rico da cultura, da arte, da literatura e das religiões legítimas. Se não, os caçadores de ouro vão aproveitar da fé legítima, da boa vontade, para perverter almas frágeis”, finaliza.
Edição e supervisão: Fabiana Maranhão