'Quis tratar o desejo feminino com franqueza, sem recuar', diz diretora do premiado 'Sempre Garotas' q4i
Estreante na direção de longas, Shuchi Talati aborda a descoberta da sexualidade feminina no premiado filme indiano que chegou aos cinemas 1v642t
Festivais de cinema, principalmente aqueles focados na cena independente, como SXSW e Sundance, geralmente apresentam boas surpresas. Sempre dá para encontrar, na programação, produções que correm à margem dos grandes estúdios, encabeçados por boas ideias e diretores novos, frescos, criativos. Um bom exemplo disso é Sempre Garotas, filme que chegou aos cinemas brasileiros no último dia 1º, após ser reconhecido ao redor do mundo. 4i4d9
Dirigido e roteirizado pela estreante Shuchi Talati, o longa-metragem fez uma carreira invejável pelos festivais de cinema em que ou - principalmente pensando em um filme de primeira viagem. Levou dois prêmios em Sundance, quatro no Mumbai Film Festival e um numa competição paralela no Festival de Berlim. Ainda foi indicado no Gotham Awards e levou o John Cassavetes Awards, para produções de até US$ 1 milhão, no Spirit Awards, o "Oscar" do cinema independente.
Não é pra menos. Sempre Garotas vem com uma proposta ousada de contar a história de Mira (Preeti Panigrahi), uma garota, em um rígido internato situado no pé do Himalaia, que descobre pela primeira vez o desejo e o romance. No entanto, sua curiosa e rebelde maioridade é afetada por sua jovem mãe, que nunca chegou a atingir a própria maturidade.
Ao Estadão, Shuchi esbanjou simpatia numa conversa de 20 minutos sobre o filme. Falou sobre suas inspirações, sobre o desafio de fazer um primeiro longa-metragem e, acima de tudo, sobre a tarefa de romper o preconceito ao falar de sexualidade na sociedade indiana.
Primeiro, gostaria de saber: de onde surgiu a ideia para o filme? Como tudo começou? 5f4a6a
A ideia do filme nasceu de um lugar de raiva e rebeldia. Eu estudei em uma escola muito parecida com a retratada no filme, onde, assim que me tornei adolescente, houve um policiamento intenso sobre como as meninas se vestiam e se comportavam. Qualquer expressão de desejo ou sexualidade era punida. Então, quis escrever uma história que refletisse esse ambiente que conheço tão bem, mostrando, contra esse pano de fundo, o despertar sexual de uma jovem. E, na narrativa, foi fundamental para mim não punir nem julgar essa descoberta, mas tratá-la como algo normal, comum, celebrá-la — deixar que ela se divertisse. Essa foi a semente do filme.
E essa semente não só deu certo, como você ainda foi premiada em Sundance logo com seu primeiro longa-metragem. Como foi isso? 3a1m1
Foi uma experiência incrível. Estudei cinema nos Estados Unidos, e, para quem vive lá, Sundance é como uma estrela guia, quase uma Meca do cinema independente. Só o fato de ter um filme selecionado já parecia um sonho. No começo, pensei: "Só de estar aqui já é tudo o que eu poderia querer". Mas depois, claro, você começa a torcer por um prêmio. Recebemos dois prêmios: o Prêmio do Público e um Prêmio Especial do Júri de atuação para Preeti Banerjee, que interpreta a protagonista. Ambos são muito especiais para mim. O Prêmio do Público, especialmente, foi uma validação da conexão que senti com a plateia em cada sessão — risos, suspiros, reações espontâneas. E o reconhecimento da Preeti foi motivo de muito orgulho. Este foi seu primeiro grande papel, e ela entregou uma atuação realmente especial.
Falando na protagonista, o filme aborda a descoberta do desejo sexual por uma jovem mulher, algo que ainda é considerado tabu em muitos lugares do mundo, inclusive no Brasil. Como foi para você abordar esse tema, pensando na realidade das mulheres ao redor do mundo e, claro, também na Índia? 575dw
Para mim, era muito importante justamente por ser um tema ainda tabu em todo lugar, em diferentes graus. As mulheres são ensinadas a sentir vergonha de seus corpos e desejos. Então, quis tratar o tema com franqueza, sem recuar. Mostramos masturbação, uma menina olhando para seus próprios genitais pela primeira vez — momentos muito íntimos. Mas, ao mesmo tempo, era fundamental não sexualizar a personagem. O desafio foi ser emocionalmente explícita, sem ser fisicamente explícita. Não há nudez no filme. Meu foco sempre foi capturar a experiência emocional, a insegurança sobre o próprio corpo, a ansiedade sobre o desejo do parceiro, sem transformar a personagem em objeto.
Falando nisso, como foi para encontrar o elenco? E como foi o preparo para as cenas íntimas? 126u
Para o elenco principal — a Meera, o namorado Sri e a mãe —, tivemos processos diferentes. Sempre irei o trabalho da Kani Kusruti, que interpreta a mãe, e ela estava em nossa lista desde o início. Para os dois jovens, fizemos uma busca ampla. Tanto Preeti quanto Keshav vieram de chamadas abertas de elenco. Nenhum dos dois era ator profissional: ela estudava em uma universidade em Délhi e ele cursava engenharia. Eles se destacaram desde o começo. Preeti tinha uma força e dignidade essenciais para a personagem, enquanto Keshav conseguiu equilibrar charme e gentileza — era importante que ele desafiasse a protagonista sem soar como um "bad boy" problemático. Sobre as cenas íntimas, nós três trabalhamos muito juntos, com muito cuidado e respeito. Não tínhamos um coordenador de intimidade — esses profissionais ainda são raros e caros na Índia —, então criamos um processo próprio: desenvolvemos a coreografia das cenas juntos, discutimos tudo com transparência, e os atores sempre tinham a opção de dizer "não". Mostrávamos como os planos seriam filmados antes de gravar, para que se sentissem confortáveis. Na prática, filmar essas cenas acabou sendo uma das experiências mais bonitas no set.
E como foi o processo de construir a relação entre mãe e filha? É uma relação complexa, cheia de camadas. Como encontrar o tom ideal? 412g1o
Essa relação evoluiu ao longo de muitos rascunhos do roteiro. Nos primeiros, eu me identificava completamente com a filha e carregava muita raiva dos adultos. Inicialmente, nem havia uma mãe no roteiro — o conflito era com uma professora. Mas, com o tempo e à medida que fui amadurecendo, percebi a importância de ter compaixão por todos os personagens. Conversar com minha mãe, com mães de amigos, com tias, todas que foram mães muito jovens, me trouxe uma nova perspectiva. Eu, uma mulher na casa dos 30, ei a ver a mãe como uma mulher jovem também, que teve que renunciar aos seus próprios desejos para viver em função da filha e do marido. Essa percepção mudou tudo para mim e deu profundidade à relação entre mãe e filha no filme.
Como foi a recepção do filme na Índia? 125j4x
A estreia foi no Festival de Cinema de Mumbai, e foi uma loucura! Os ingressos esgotaram em minutos e havia filas enormes para conseguir entradas de última hora. Assistir ao filme com o público indiano foi muito especial, porque eles riam não só das cenas universais, mas também de detalhes culturais muito específicos. Recebi muitos relatos emocionados de jovens mulheres que se viram retratadas na tela pela primeira vez. Depois, o filme foi lançado no Prime Video e, embora o digital não tenha essa conexão presencial, pude acompanhar reações principalmente pelo Letterboxd. Fiquei tocada principalmente pelos comentários de jovens homens refletindo sobre seus comportamentos ados, suas mães, irmãs — e como o filme os fez repensar suas atitudes.
